quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O dia da festa

Aquele título significava tudo pra ele. A esperança de finalmente poder comemorar com seu time aquela conquista tão sonhada desde seus doze anos o deixava alegre e ao mesmo tempo tenso. Há muito a torcida não ficava tão empolgada com as atuações da equipe. Ele não se concentrava mais no trabalho, a namorada o largou pois não agüentava mais: ele só tinha olhos e mente voltados para a realização daquele sonho, que era seu mas não dependia em nada dele. Acompanhou o time em todos os jogos do campeonato. E agora naquela grande final ele estava ali deitado naquela maca de metal fria aguardando que alguém o viesse buscar. A enfermaria do estádio tinha um ar mórbido, com as paredes pichadas pelos torcedores com os lemas de suas torcidas organizadas e com frases do tipo “daqui não se sai com vida”. A impressão era de que ele estava na enfermaria de um presídio. Na sala havia três macas sem colchão como a sua. As outras duas estavam desocupadas. O enfermeiro saiu para procurar o médico de plantão que provavelmente estava em meio aos torcedores. O deixou ali sozinho e disse que radinhos eram proibidos no local.
O silêncio naquele lugar era assustador. Muito ao fundo apenas era possível “sentir” os gritos da torcida, porém sem identificar o que cantavam. O único som ouvido ali era o de peças metálicas de tocando, devido ao constante movimento das macas resultantes da vibração no estádio. A vibração parecia cada vez maior o que o deixava mais tenso: será que haviam feito um gol? Aos poucos a vibração foi voltando ao normal e ele levou um imenso susto quando a porta se abriu. O enfermeiro trazia um torcedor apoiado em seus ombros e pulando em uma perna só: “empatamos...empatamos!!!”, gritava empolgado o homem com a perna quebrada. Foi possível perceber pela conversa com o enfermeiro que ele havia torcido o tornozelo enquanto pulava na comemoração do gol na arquibancada. Ao saber do empate um misto de alegria e arrependimento o tocou. Ele levantou a mão como que comemorando e saudando o torcedor que trazia a boa notícia e foi prontamente seguro pelo enfermeiro: “já disse para não tirar a mão da barriga!” E tinha razão. Aquele pequeno momento em que levantou o braço fez aumentar consideravelmente a poça de sangue formada na maca pelo que escorria de seu ferimento no abdômen.
Ao ver o sangue a alegria foi dando lugar totalmente ao arrependimento. Começou a pensar que se tivesse ficado quieto no intervalo poderia estar lá empurrando o time rumo à virada. Mas ele não agüentou sair perdendo no fim do primeiro tempo e assistir quieto as provocações da torcida rival. Ficava feliz ao lembrar de como acertou a primeira voadora no magrelo que estava de costas conduzindo as musiquinhas ofensivas. Porém depois disso a confusão generalizada tomou conta do lugar e ele só lembra de ser atingido na altura do estômago por uma lâmina, cair no chão e sentir ser deferido em seu rosto o primeiro chute. Acordou dez minutos depois na enfermaria, de acordo com o enfermeiro que disse a ele ter muita sorte de ter retomado a consciência tão rapidamente.
Naquele momento ele sentia uma tonteira muito forte mas conseguiu ainda perguntar ao torcedor do tornozelo quebrado se o time havia melhorado: “tá jogando muito, bem diferente do primeiro tempo. Com certeza vamos virar...ainda deve ter uns dez minutos de jogo”. Ao ouvir isso ele já começou a imaginar o dia seguinte: ele já melhor comemorando o título pelas ruas da cidade, lavando a alma de tantos anos de gozações que teve de agüentar da torcida rival. Ele seria a pessoa mais feliz do mundo. Valeu a pena esperar.
De repente as macas começaram a vibrar como nunca e a esperança do gol da virada tomou conta dele. Como de impulso ele levantou novamente o braço e foi de novo repreendido pelo enfermeiro. A poça de sangue começou a pingar no chão e sua dor aumentou muito. A vibração do estádio deixava ele ainda mais tonto. Um forte dor de cabeça surgiu e a vista começou a escurecer. De repente uma forte luz atingiu seus olhos e ele perdeu novamente a consciência. O enfermeiro saiu correndo para procurar novamente o médico e alguns amigos que haviam ido com ele ao estádio adentraram a enfermaria para lhe dar a notícia do gol da virada aos 48 do segundo tempo. Entraram cantando e vibrando sabendo que dariam a melhor notícia da vida do amigo. Tarde demais. Ele estava morto.
No dia seguinte sobre o caixão foi colocada uma bandeira com o escudo do clube e sobre ele já estava bordada a estrela que representava o título tão sonhado ganho na véspera. Enquanto o caixão descia o choro da família se misturava aos gritos de “é campeão” de vários torcedores que foram ao cemitério em troca de alguns reais patrocinados por membros da imprensa com o intuito de dar mais dramaticidade àquela reportagem.

***escrito originalmente em 17/05/2005

2 comentários:

Blog do Rani disse...

fictício ou realístico, o episódio?
tá bem escrito, cara, gostei muito.
parabéns!

Anônimo disse...

três minutos pra reflexão...rs
massa o texto...seria interessante postar isso nos sites de torcida organizada heim?rs
ou até mesmo pra parte de contos do jornal pampulha...rs
bjomeliga